Flora Tristán

primeira parte, assim, a base para o leitor considerar melhor a proposta de ... Guerra expõe o sistema aristotélico de dualidades que liga a mulher ao corpo e o.
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ISSN 2178-8200

Flora Tristán: uma mulher do século XIX sob o olhar de Mario Vargas Llosa Leila S. Del Pozo González (UNIOESTE) 1 Adriana A. de Figueiredo Fiuza (UNIOESTE) 2

RESUMO: Flora Tristán é uma socialista utópica francesa de inícios de século XIX. Vários estudos a apontam como uma importante precursora do feminismo. Desde sua condição de filha ilegítima, desclassada, pária fugitiva, sem estudos formais, se interessa pela condição da mulher. Ela foi uma personalidade reconhecida em vida, no entanto, ao morrer poucos a lembraram. Entre as propostas de Tristán encontramos pautas que aparecem no livro O Capital (1867). Questões como formar a união internacional operária já tinha sido proposto por Tristán vinte anos antes que Marx. Embora sua obra tenha sido esquecida, criou-se um mito ao redor de sua vida e obras e só alguns se arriscaram a fazer uma representação da personagem feminina histórica. Quando Mario Vargas Llosa escreve o romance El paraíso en la otra esquina (2003) traz de volta a memória da personagem histórica do século XIX, acrescentando uma nova representação ficcional. O presente artigo pretende analisar a formação estereotípica da personagem histórica Flora Tristán no romance El paraíso en la otra esquina (2003) de Mario Vargas Llosa, procurando estabelecer as analogias, traços e atributos que estereotipam, de uma ou outra forma, o delineamento do perfil da personagem feminina do século XIX. Para isso nos apoiamos em diversas teorias contemporâneas, além de tomar como base as biografias escritas por Luis Alberto Sánchez (1942), Stéphane Michaud (1980), Yolanda Marco (1993), Leandro Konder (1994). PALAVRAS-CHAVE: Flora Tristán; representação ficcional de uma personagem histórica feminina; El paraíso en la otra esquina de Mario Vargas Llosa. RESUMEN: Flora Tristán es una socialista utópica francesa de inicios de siglo XIX. Varios estudios la consideran como una importante precursora del feminismo. Desde su condición de hija ilegítima, desclasada, paria fugitiva, sin estudios formales, se interesa por la condición de la mujer. Ella fue un personaje reconocido en vida, sin embargo, al morir pocos la recordaron. Entre las propuestas de Tristán encontramos pautas que aparecen en el libro El Capital (1867). Cuestiones como formar la unión internacional obrera ya había sido propuesto por Tristán veinte años antes que Marx. Aunque su obra fue olvidada, se creó un mito alrededor de su vida y obras y sólo algunos se arriesgaron a hacer una representación del personaje femenino histórico. Cuando Mario Vargas Llosa escribe la novela El paraíso en la otra esquina (2003) de Mario Vargas Llosa, vuelve a traer la memoria del personaje histórico del siglo XIX, añadiendo una nueva representación ficcional. El presente artículo pretende analizar la formación estereotípica del personaje histórico Flora Tristán en la novela El paraíso en la otra esquina (2003) de Mario Vargas Llosa, buscando establecer las analogías, 1

Acadêmica do quarto ano do curso de Letras Português/Espanhol pela UNIOESTE/Cascavel. Bolsista da Fundação Araucária. 2 Professora Adjunta da UNIOESTE/Cascavel na Graduação e Pós-graduação em Letras nas áreas de Literatura e Cultura Hispânicas.

trazos y atributos que estereotipan, de una forma u otra, el delineamiento del personaje femenino del siglo XIX. Para lo cual nos apoyamos en diversas teorías contemporáneas, además de tomar como base las biografías escritas por Luis Alberto Sánchez (1942), Stéphane Michaud (1980), Yolanda Marco (1993), Leandro Konder (1994). PALABRAS CLAVE: Flora Tristán; representación ficcional de un personaje histórico femenino; El paraíso en la otra esquina de Mario Vargas Llosa. INTRODUÇÃO

O presente artigo está dividido em três partes. A primeira parte, visando entender o pensamento de Flora Tristán, quem nasceu e viveu como toda mulher francesa do século XIX, com base nos estudos da vida privada propostos por Michelle Perrot (2001, 2005) e outros autores importantes como Lucia Guerra (2004) e Rose Muraro (1971, 2002). Estas autoras apontam à existência de vários preconceitos pesando sobre a vida da mulher europeia da época. Na segunda parte do artigo será delineada a vida de Flora Tristán pelos seus biógrafos Sánchez (1942), Michaud (1980), Marco (1977) e Konder (1994), conformando junto à primeira parte, assim, a base para o leitor considerar melhor a proposta de personagem histórico feita por Vargas Llosa. A terceira parte, portanto, trata da reconfiguração da personagem feminina Flora Tristán no romance O paraíso na outra esquina (2003) de Mario Vargas Llosa.

ESTUDOS DA VIDA PRIVADA DO SÉCULO XIX

Michelle Perrot (2001, 2005) aborda nos seus livros o silenciamento da mulher na história, tema que motivou pesquisas dentro dos estudos sociais de finais do século XX. A mulher, como ressaltou Duby (apud PERROT, 2001, p. 171), foi objeto do poder do homem, sem possibilidade de decidir por si mesma ante as leis, um objeto de troca nos arranjos matrimoniais. As mulheres, no entanto, tiveram, sim, um papel importante na história. Elas, segundo Perrot (2005), participaram ativamente da revolução francesa, se revelaram nos motins por alimentos na França do século XIX. A mulher teve voz dentro do lar e nos espaços concedidos a ela, no entanto, fora desses espaços, essa voz não foi considerada nos anais da história oficial. Os paradigmas sociais se fundaram em base a preceitos que consideram a mulher como um ser inferior se comparado ao homem. Lucía Guerra, autora chilena, no seu livro La mujer fragmentada (2004) traz um interessante ponto de discussão à tona: o fato da língua que utilizamos reservar para o “signo mulher” um peso/valor de negativo, sinistro, maligno, imaturo, irracional, frágil, maléfico, imperfeito (JUNG apud GUERRA, 2004, p. 12). Este

signo, segundo a estudiosa chilena, seria representado como o elemento completivo do “signo homem”. Guerra expõe o sistema aristotélico de dualidades que liga a mulher ao corpo e o homem à alma, ou, naturaleza-mulher e cultura-homem. Assim, seriam as dicotomias tradicionais direita/esquerda, bem/mal, fortaleza/fragilidade, potência/impotência as que correlacionam a manifestação cotidiana do masculinus/feminis. Assim, a função da mulher estaria associada à matéria, ao animal, ao inferior, enquanto que a função do homem está associado com o trabalho espiritual, “nobre e infinitamente superior de dar vida” (GUERRA, 2004, p. 18, tradução nossa). A autora aponta aos sutis detalhes que existem na cultura humana tais como aquela dos botões da camisa masculina ser costurados do lado direito, enquanto que os da feminina do lado esquerdo. Esse artifício social seria uma das amostras culturais de simbolismos presentes na nossa vida, que passamos por despercebido e que ajudam a manter a desvalorização do signo mulher, que, no entanto, formariam parte do construto social humano patriarcalista. Da mesma forma, Michelle Perrot (2005) observa que em um dos livros base de nossa civilização ocidental, a bíblia, lê-se: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por Ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem Ele. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens” (João 1:1-4)3. Assim, “no início era o Verbo, mas o Verbo era Deus, e Homem” (PERROT, 2005, p. 9), portanto, segundo ela, quem desde início teria a palavra seria um homem, justificado pelo Deus homem. O positivismo ajudou justificando o traço de “inferioridade” atribuído à mulher com estudos anatômicos do tamanho do cérebro e de “histerismo feminino” de Freud. No entanto, estudos de, a “pensadora da condição humana”4, Rose Muraro apresentam dados científicos que levam a pensar numa “construção humana da inferioridade da mulher” No seu livro, Muraro (1971, 2002) fala do uso da religião e das leis sociais para reforçar os papéis sociais que mulher e homem recebem. Unidas conceberam a fragilidade/imaturidade/inferioridade da mulher na nossa sociedade patriarcal. Todos os dados, recolhidos na seção seguinte, servem de apoio para a compreensão da personagem histórica per se justificado pela falta de divulgação da socialista utópica em questão nos estudos no Brasil. Só o filósofo brasileiro Leandro Konder fez um estudo sobre

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Disponível em: . Acesso em 16 Jun. 2014. Leonardo Boff, batiza a Rose Marie Muraro sob o título de “pensadora da condição humana. Artigo disponível em: . Acesso em Jun. 2014. 4

Tristán que logo se transformou na biografia a que tivemos acesso, Flora Tristan: uma vida de mulher, uma paixão socialista, publicada no Brasil em 1994. A VIDA DE FLORA TRISTÁN5

Nasceu em 1803, de pai peruano/espanhol, um militar de alto cargo no exército espanhol. Mariano Tristán casa com Anne-Pierre Laisney, filha de burgueses franceses migrantes em Bilbao, Espanha. O casamento é religioso6 e não regularizam os documentos devidamente no consulado, nem na Espanha, nem na França. Consequentemente, ao morrer o pai de Flora, Anne-Marie não tem a documentação para demonstrar ser a esposa de Tristán. Este fato joga a Flora Tristán dentro do grupo dos “destinados a falhar”. Só aos quinze anos ela sabe de sua “ilegitimidade” da maneira mais cruel: o pai de um jovem burguês a rejeita como possível nora, um dos primeiros sensabores na vida amorosa de Tristán. Aos dezessete anos casa com o dono do ateliê, em que trabalha, André Chazal, forçada por sua mãe. Sua vida matrimonial é um desastre. Ela casou com um apostador bêbado que a espanca e violenta. Grávida do terceiro filho, Flora sob pretexto de levar ao interior as crianças para melhorar sua saúde, deixa o marido. Chazal perde todo para seus credores e, não conforme com o abandono de Flora, a persegue. Tristán não recebe apoio de parte da sua família e compreende que sempre fez parte do grupo dos desclassados. Ela se autoproclama pária. Sob diferentes sobrenomes e disfarces, Tristán trabalha em todo tipo de ofícios em lugares distintos, sempre fugindo do ex-marido. A lei do divórcio tinha sido revogado e os problemas de violência no matrimônio era considerado dentro da chamada esfera privada. Falece um filho e o outro é levado pelo pai. Flora continua na sua fuga com a caçula. Conhece ao capitão Zacarías Chabrié, num momento em que ela precisa de dinheiro para sustentar a filha. O marinheiro lhe fala da família Tristán no Peru e Flora decide arriscar e escreve ao seu tio, sem saber que a missiva servirá ante o tribunal no Peru como prova no litígio contra seu tio para receber sua herança. Resolve viajar à pátria do seu pai e deixa sua filha sob cuidados de Mme. Bourzac. Seu objetivo não é atingido. Porém, essa viagem serve para ela refletir sobre o que acontece ao seu redor e compara a vida de Europa com a dos lugares visitados. 5

A vida de Flora Tristán apresentada nesta seção estão baseadas nas biografias elencadas na introdução do trabalho. 6 Segundo Badinter (1986), depois da Revolução Francesa institui-se o matrimônio laico. Portanto, talvez tenha sido esse o motivo do estado francês não reconhecer o matrimônio dos pais de Flora Tristán que se uniram em matrimônio religioso em Bilbao, mesmo apresentando testemunhas. O pai de Flora em vida, talvez, poderia ter tomado algumas providências para com os seus parentes.

Flora escreve sobre tudo quanto lhe chama a atenção, acrescentando as suas reflexões. Inicia assim os seus estudos sociais. Ao voltar à França escreve seu primeiro livro: Nécessité de faire un bon accueil aux femmes étrangères, Necessidade de bem acolher as mulheres estrangeiras, (1835), onde mostra seu posicionamento enquanto a situação da mulher. Só em 1838 publicará seu diário de viagem sobre a sua visita ao Peru: Pérégrinations d'une paria, Peregrinações de uma pária, escrita entre 1833 e 1834. Nessa época estudou as teorias de moda. Bebeu da fonte de William Godwin (1756 - 1836), Robert Owen (17711858), Mary Wollstonecraft (1759 - 1797), Saint-Simon (1760 - 1825), Fourier (1772 - 1837) e Cabet (1788 - 1856), com o que melhora a sua ideia da necessidade da mulher ter direitos na sociedade. Flora escreveu também Méphis (1838), Promenades dans Londres (1840), Passeios por Londres, L’Union ouvrière (1840), União operária, Le Tour de France, Tour de França, escrito entre 1843 e 1844, mas só publicado em 1973. Segundo Konder (1994, p. 29), “foi durante o reinado de Louis-Philippe que Flora Tristan escreveu suas obras, travou suas lutas e desenvolveu suas atividades políticas”. Tristán teria defendido o acesso à educação e formação profissional para as mulheres, direito à livre eleição do companheiro, direito ao divorcio e o direito à igualdade de filhos de mães solteiras frente ao patrimônio paterno; todo o qual não seria possível de pensar viver sem nos dias de hoje, razão pela qual se considera a Flora Tristán como uma mulher além do seu tempo. Porém, ainda continuou perseguida por Chazal, chegando a sofrer um atentado. O exmarido, num ataque de fúria, dispara contra Flora atingindo-a gravemente. Sobrevive aos tiros, Chazal é condenado à cadeia. Ela continua com seus projetos. Inicia sua última viagem pela França, onde escreve o Tour de France, deixando o texto sem acabá-lo, pois falece de uma congestão cerebral durante o seu Tour em 14 de novembro de 1844.

RECONFIGURAÇÃO

DA

PERSONAGEM

FEMININA

FLORA

TRISTÁN

NO

ROMANCE O PARAÍSO NA OUTRA ESQUINA

Vargas Llosa evidencia sua simpatia pela personagem histórica Flora Tristán durante uma entrevista a Ricardo Setti (1988) na qual confessa a sua vontade de escrever sobre ela, pois: “a primeira mulher à qual caiba realmente chamar feminista, no sentido de que teve uma consciência clara da necessidade de reivindicar para a mulher – do ponto de vista jurídico, social e político – e exigir para ela uma posição na sociedade em absoluta igualdade com o homem” (VARGAS LLOSA apud SETTI, 1988, p. 67-68).

O nobel peruano não teria sido o primeiro peruano a escrever sobre Flora Tristán. Luis Alberto Sánchez em 1942 escreveu uma biografia romanceada de Tristán. Percebemos em Del Pozo González e Fiúza (2013) como Sánchez delineia a figura de Tristán sob uma série de estereótipos “[...] criando uma Flora Tristán anti-herói, uma mulher bela, vaidosa, orgulhosa, interesseira, que luta pelos seus ideais ” (DEL POZO GONZÁLEZ, FIUZA, 2013, p. 14). Assim, também observamos que Sánchez:

[...] Cuando pasa por la calle, no hay quien no vuelva la cara para mirarla. Y ella lo sabe, lo sabe bien, y ora benévola, ora coqueta, ora apacible, responde a los mohines, sonrisas y arrumacos, con fruncimiento de cejas [...] Alguien que pide clemencia a los ojos de la jovenzuela. Ella fría y calculadora - hielo entre tanto fuego -, mira, mide, considera, niega. [...] Orgullosa Flora Tristán-Moscoso y Leisné, beldad exótica de quince años, hija del benemérito coronel don Mariano y de la Dulce y bella Teresa, nieta de emperadores y santos, de oidores, generales, reyes de armas, vecina ahora de reyes de baraja capona [...] su orgullo de desvencijada aristocracia, más empinada por tanto. (SÁNCHEZ, 1942, p. 41, 43)

Sánchez, na sua biografia romanceada, recria uma personagem histórica ciente de sua beleza lhe acrescenta vaidade e orgulho que de alguma forma sabe manipular utilizando a sua beleza. A Flora de Sánchez se sente orgulhosa de ter uma família descendente de pessoas poderosos emperadores, reis, aristocratas. O biógrafo Konder (1994) fala da beleza de Tristán, no entanto, o olhar é outro:

[...] Flora, em vida, não passou despercebida. Chegou mesmo a ser famosa. Foi reconhecida como uma das personalidades mais notáveis do socialismo francês no reinado de Louis-Philippe (1830 a 1848). [...] Arnold Ruge e Moses Hess (os dois socialistas alemães que trouxeram Marx para Paris e lhe entregaram a direção da revista Anais Franco-Alemães) visitaram Flora, ficaram muito impressionados com ela. Ruge ficou tão fascinado que, embora Flora fosse uma mulher de pequena estatura, ele a descreveu, após a visita, como "uma mulher grande, vestida de negro" (KONDER, 1994, p. 16).

Konder (1994, p. 106 -107) destaca, porém, a admiração de outros por ela. Menciona na sua biografia pessoas que escreveram sobre a sua beleza. Alguns a chamaram de “páriaduquesa” pelo seu porte elegante e orgulhoso. Jules Janin, segundo o biógrafo, ironizava a sua postura e lhe atribuía “ambições desmesuradas” que, no entanto, eram acompanhadas “de uma descrição que deixa transparecer certo fascínio estético pela escritora [...] tinha um porte elegante e flexível, uma cabeça orgulhosa e cheia de vivacidade, os olhos cheios de fogos orientais, uma longa cabeleira negra que poderia servir-lhe de casaco (manteau)” (KONDER,

1994, p. 106). Tristán mexia com os homens e era assediada, recebia cartas de amor, com declarações. Flora chegou a escrever: De ma vie je n’ai appartenu à aucun homme – car toujours c’est moi quei ai pris l’initiative. Lorsque j’ai rencontré um individu que me plaisait, ou un homme que j’aimais, j’ai dit au premier – voulex-vous vous donner à moi? et à l’autre – voulez-vous m’appartenir? Quand aux declarations d’amour, on m’em a faite des centaines et jamais je n’ai accepté aucun des hommes qui me les avaient adressées [...]7 MICHAUD, 1980, p. 183)

E, segundo Konder, Flora, a personagem histórica, escrevera, sobre a carta do pretendente, “Só me faltava essa!” (TRISTÁN apud, KONDER, 1994, p. 107). O biógrafo acrescenta que Flora não tinha, na realidade, a desenvoltura que mostra na sua resposta acima. Ela adotava o ideal romântico do amor absoluto deslocado ao plano das relações puramente espirituais e “no seu trato com os homens, a expressão da sensualidade permanecia sempre sob um controle tirânico. Vargas Llosa mostra a jovem Tristán como uma sedutora ingênua: “Lo sedujiste a primera vista, con tus grandes ojos profundos y tu rizada cabellera negra, Andaluza. (¿Fue André Chazal el primero en apodarte así?) Era doce años mayor que tú y debió hacérsele agua la boca soñando con la fruta prohibida de esa doncellita” (VARGAS LLOSA, 2003, p. 47). Por outro lado, Vargas Llosa constrói a sua personagem ficcional como uma mulher amadurecida, ciente da sua beleza e dos poderes que vem com ela:

¿Se habían enamorado de ti los diecinueve varones de Le Mexicano, Florita? Probablemente. Lo seguro era que todos te deseaban, y que, en ese encierro forzado, tener cerca de una mujercita de grandes ojos negros, largos cabellos andaluces, cintura de maniquí y gestos graciosos, los desasosegaba y enloquecia […] Todos te deseaban, sí, por ese encierro y privaciones que realzaban tus encantos, aunque ninguno te llegara jamás a faltar el respeto, y sólo el capitán Zacarías Chabrié te declarara formalmente su amor (VARGAS LLOSA, 2003, p. 182 – 183).

A personagem ficcional criada por Vargas Llosa, aparentemente, aceita as sugestivas palavras do narrador que por meio do fluxo de consciência dialoga com as biografias. O narrador continua: “¿Te habías arrepentido, Florita, em estos once años de haber jugado em aquel viaje con los sentimientos del buen Zacarías Chabrié? […] ¿No te arrepentías?” (VARGAS LLOSA, 2003, p. 184-185), e acrescenta como resposta final da personagem: 7

Nunca, na minha vida, pertenci a homem algum, porque sempre me coube a iniciativa. Quando encontrava um indivíduo que me agradava, era eu que lhe perguntava: ‘Quer entregar-se a mim?’ Quando encontrava um homem de quem me enamorava, era eu que lhe perguntava: ‘Quer pertencer-me?’ Tenho recebido centenas de declarações de amor e nunca aceitei nenhum dos homens que as faziam (TRISTÁN apud MICHAUD, 1980, p. 107, tradução de KONDER)

“No”. O nobel peruano recria também a possibilidade de Flora ter se sentido atraída por alguns personagens, como o doutor Goin:

Flora advirtió que el dueño de casa la miraba con admiración. No sólo lo atraían tus hazañas intelectuales; también, lo negro de tus cabellos enrulados, la gracia y viveza de tus ojos y lo armonioso (p. 133) de tus rasgos, Andaluza. Se sintió muy halagada. “He aquí un hombre al que, tal vez, hubieras podido soportar en casa”, pensó (VARGAS LLOSA, 2003, p. 132).

Tanto na ficção como na realidade, não passou de ser um relacionamento como o que teria acontecido com o Dr. Evrat “uno de los vários enamorados, platônicos “malgré eux”, de Flora (MARCO, 1993, p. 10). O escritor acrescenta sob a voz do narrador: “Me desea”, pensó, disgustada. El desagrado le impidió dormir su última noche en Roanne, y la tuvo tensa y malhumorada al día siguiente durante el viaje en tren a Saint-Étienne. [...] (VARGAS LLOSA, 2003, p. 137). Nos diálogos acima, entre narrador e o pensamento da Flora Tristán ficcional, se aprecia uma personagem segura de si, que não se arrepende de ter tomado algumas opções na sua vida e que se tivesse oportunidade faria as mesmas escolhas:

¿Qué habría pasado si el coronel don Mariano Tristán hubiera vivido muchos años más? No hubieras conocido la pobreza, Florita. [...] estarías casada con un burgués [...] Ignorarías lo que es irse a la cama con las tripas torcidas de hambre, no sabrías el significado de conceptos como discriminación y explotación. Injusticia sería para ti una palabra abstracta. Pero, tal vez, tus padres te habrían dado una instrucción [...] Desconocerías todas las cosas que debiste aprender por necesidad. Bueno, sí, no tendrías esas faltas de ortografía que te han avergonzado toda tu vida y, sin duda, hubieras leído más libros de los que has leído. [...] Serías un bello parásito enquistado en tu buen matrimonio. [...]No hubieras viajado al Perú, ni conocido Inglaterra [...]nunca hubieras tomado conciencia de la esclavitud de las mujeres ni se te habría ocurrido que, para liberarse, era indispensable que ellas se unieran a los otros explotados a fin de llevar a cabo una revolución pacífica [...] (VARGAS LLOSA, 2003, p. 15-16)

Na exposição dos fatos hipotéticos de não ter falecido o pai de Flora, o narrador de Vargas Llosa lembra à personagem ficcional o que poderia ter acontecido num diálogo, e acrescenta uma reflexão que parece evidente ao leitor contemporâneo: Se Tristán não tivesse passado pelas necessidades que passou, é pouco provável que tivesse se sentido uma pária e lutado pelas injustiças, tal qual o fez. Poderia também ter acontecido muitas outras coisas, mas o narrador prefere dar uma resposta sob a voz de Flora: “Mejor que te murieras, mon cher papa, riu-se saltando da cama” (VARGAS LLOSA, 2003, p. 16). Outro momento em que a sua personagem ficcional se mostra decidida a repetir todo de novo está quando o narrador comenta com o pensamento de Flora: “No lo lamentabas. Lo volverías a hacer, exactamente,

porque aún ahora, después de veinte años, se te ponía la carne de gallina imaginando tu vida si hubieras seguido siendo madame André Chazal” (VARGAS LLOSA, 2003, p. 58). A Flora de Vargas Llosa se sente inferior devido a que não teve uma educação formal. Seu narrador constantemente lembra à personagem ficcional sobre seus erros de ortografia. No entanto, fala sobre sua ortografia e lhe mostra também um fato positivo, como quando comenta: “Por eso George Sand te despreciaba, Florita, y por eso sentías siempre, ante esa gran señora de las letras francesas, una paralizante inferioridad” (VARGAS LLOSA, 2003, p. 59), e logo acrescenta palavras em Olympia, sua confidente: “Tú vales más que ella, tontita” (VARGAS LLOSA, 2003, p. 59). Outro momento em que a personagem lembra da sua educação é ao visitar ao monsenhor François-Victor Rivet. O narrador comenta:

Aunque, desde jovencita y por todos los medios a su alcance, Flora había tratado de llenar las deficiencias de su formación, siempre la abrumaba la idea de ser inculta, ignorante, cuando aparecía en su camino una persona tan sabia, de francés tan bien hablado, como el obispo de Dijon. Sin embargo, no salió abatida del palacio episcopal. Más bien, estimulada. No podía dejar de pensar, luego de oírlo, en lo grata que sería la vida cuando, gracias a la gran revolución pacífica que estaba poniendo en marcha, todos los niños del mundo recibieran en los Palacios Obreros una educación tan esmerada como la que debió tener monseñor François-Victor Rivet (VARGAS LLOSA, 2003, p. 62)

A Flora Tristán ficcional sabe de suas dificuldades na escrita e sente-se realizada ao saber que seus planos resultarão na educação ao alcance de muitas crianças que como ela não tem acesso à educação. No trecho acima, a Flora ficcional sente-se orgulhosa dos seus planos e a impressão que o leitor tem é que ela está saboreando o resultado dos seus projetos. Mesmo sabendo-se doente, a ficcional Flora Tristán inicia seu tour pela França, desejosa de comunicar ao mundo seus ideais: “Hoy comienzas a cambiar el mundo, Florita”. No la abrumaba la perspectiva de poner en marcha la maquinaria que al cabo de algunos años transformaría a la humanidad, desapareciendo la injusticia. Se sentía tranquila, con fuerzas para enfrentar los obstáculos que le saldrían al paso (VARGAS LLOSA, 2003, p. 11)

A personagem ficcional mostra-se cheia de energia, de confiança na sua competência e “com forças para encarar os obstáculos”, pois “se prometió a sí misma, com fuerza: “La mujer-mesías serás tu”, a mulher que Prosper Enfantin descreveu que ajudaria ao lado do pensador utópico a redimir o mundo. O narrador de Vargas Llosa enfatiza que Flora nesse momento encontra-se numa posição superior aos sansimonianos: “Los habías dejado muy atrás, Andaluza” (VARGAS LLOSA, 2003, p. 11).

Konder (1994, p. 99) descreve as condições de transporte naquele tempo, e que era “penosamente lento […] E a passageira Flora viajava num estado físico deplorable; sofria de dores lancinantes, seu peito parecia que ia explodir”. A própria Flora Tristán, a personagem histórica, comentou sobre o assunto: “Ah, Jesus, meu pobre irmão, tuas grandes dores devem te parecer pequenas, comparadas às minhas [...] Jamais Jesus, os apóstolos e os mártires cristão passaram pela centésima parte do suplício que estou suportando” (TRISTÁN apud KONRAD, 1994, p. 100)

Vargas Llosa, a esse respeito, constrói uma representação ficcional sobrehumana de Tristán: “No estaba cansada. En veinticuatro horas no había tenido dolores en la espalda ni en la matriz, ni advertido al huésped frío en su pecho” (VARGAS LLOSA, 2003, p. 16), refiriendo-se a sua doença e a bala de Chazal alojada perto do coração. Em outro momento: “Flora no se dejó desmoralizar por esos malos pronósticos, ni por la colitis que, sin tregua, la atormentó los diez días de Avignon (VARGAS LLOSA, 2003, p.188). Em Marselha, a personagem ficcional: “pasó sus últimos días en el puerto mediterráneo en cama, agobiada por el calor, los dolores de estómago, la debilidad general y rachas de neuralgias. […] Mientras hablaba, le fallaron las fuerzas y se desmayó” (VARGAS LLOSA, 2003, p. 234-235). A Flora de Vargas Llosa mesmo com dores fortes no corpo sempre estará disposta a tentar alguma forma para fazer o seu trabalho proselitista. Aparentemente, na personagem ficcional, a vontade de fazer é mais forte que seu estado físico, questão que é demonstrada, por exemplo, quando a Flora ficcional desmaia nas citações acima. As mulheres que vivem sós despertam suspeitas no século XIX. Jules Michelet, em A mulher (1995), descreve a questão do perigo a que se expõe uma mulher francesa que vivia sozinha naquela época:

Quantos aborrecimentos para uma mulher sozinha! Quase não pode sair à noite; tomariam-na por uma rapariga. […] Tudo é embaraço para ela, e tudo é liberdade para o homem. [...] Poderiamos citar fatos espantosos, inacreditáveis. […] Esse livro, Une fausse position, foi publicado há quinze anos e logo desapareceu. É o itinerário exato, o diário de estrada de uma pobre mulher de letras, o rol dos pedágios, dos impostos, das taxas de barreira, das taxas de entrada etc., que se exigem dela para permitir-lhe alguns passos; o amargor, a irritação que sua resistência lhe cria a toda volta, de modo que todos a cercam de obstáculos, que estou dizendo? De obstáculos mortíferos (MICHELET, 1995, p. 24-30).

Flora Tristán sempre viveu acompanhada de sua mãe enquanto solteira. Ela ao decidir abandonar o lar se expõe também aos perigos e preconceitos que a sociedade tinha sobre a mulher que morava sozinha. São muitas as vezes em que Vargas Llosa recria esses

momentos em que a sociedade põe em dúvida a sua “honestidade”, a exemplo do seguinte recorte:

Un rumor serpentino iba escoltándola mientras se abría camino entre la masa sudorosa que la dejaba pasar y se cerraba a su espalda. No se sentía incómoda.Al patrón del establecimiento, un hombre bajito , de modales untuosos, que se acercó a preguntarle a quién buscaba, le respondió de manera cortante: a nadie. -¿Por qué me lo pregunta? -inquirió a se vez, de modo que todos la oyeran -. ¿No se permite la entrada a las mujeres aqui? A las mujeres decentes, sí - exclamó, desde el mostrador, una voz aguardentosa-. A las hetairas, no (VARGAS LLOSA, 2003, p. 45)

Segundo Konder, “além de ser vista como aloucada, a escritora viajante, mergulhada na sua solidão, era tida como uma perigosa subversiva” (KONDER, 1994, p. 109). O nobel peruano descreve seu caráter forte:

[...] Tenías un carácter endemoniado, Florita; a tus cuarenta y un años aún no conseguías dominar tus arrebatos. Sin embargo, gracias a ese espíritu insumiso, a esos estallidos de mal humor, habías sido capaz de mantenerte libre y de recuperar la libertad cada vez que la perdías (VARGAS LLOSA, 2003, p. 91)

Em outros momentos a chama de madame la colére e descreve momentos em que ela perde a paciência: “Cuando la despidieron en el albergue habían hecho las paces y uno de ellos, en tono risueño, le dijo que por fin había entendido, oyéndola esta noche, por qué su sobrenombre de Madame-la-Colère” (VARGAS LLOSA, 2003, p. 91). A polícia francesa a persegue em Lyon, em Toulon e outros lugares. Na ficção, ela é também perseguida pela lei: “Al dia siguiente de sul legada, el comisario de Toulon [...] la interrogo media hora sobre sus intenciones en la ciudad. (VARGAS LLOSA, 2003, p. 254). Como registra Reis (1998, p. 233), “todo texto é produzido por um determinado agente social, inscrito numa dada circunstância histórica e porta-voz de um projeto ideológico e de classe”. A citação anterior, unida à teoria de Lejeune sobre o pacto existente entre autor e leitor

tem muita relação com o que o autor da obra considera durante a produção de seu romance. O pacto entre autor-leitor que Lejeune propõe como uma convenção social na qual o leitor acredita na veracidade do escrito pelo autor, já que [...] el lector no verifica, y tal vez no sabe, quién es esa persona; pero su existencia queda fuera de duda [...] El autor se define simultáneamente como una persona real socialmente responsable y productor de un discurso (LEJEUNE, 1994, p. 60 -61).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, durante a leitura do texto de El paraíso em la outra esquina, o leitor acredita no escrito pela personagem histórica. Assim, Vargas Llosa estaria criando uma personagem sob novos estereótipos: mulher incansável, fanática pela sua luta social, confiante na sua capacidade de mudar o mundo, admirada pela sua beleza ela repudia o relacionamento homem-mulher devido ao vivido durante seu matrimônio. Ao contrário do apresentado por Sánchez, a personagem configurada de Tristán não é umbiguista. Vargas Llosa propõe uma personagem a qual apresenta como uma verdadeira lutadora social e mesmo com dificuldades consegue ser respeitada por todos, pela sua obra e inteligência, mesmo sendo uma simples mulher sozinha do século XIX.

REFERÊNCIAS DEL POZO GONZÁLEZ, Leila; FIUZA, Adriana Aparecida de Figueiredo. Representações da precursora do feminismo Flora Tristán em Flora Tristán: una mujer sola contra el mundo, de Luis Alberto Sánchez e Flora Tristán, feminismo y utopía de Yolanda Marco. In: XI SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA, HISTÓRIA E MEMÓRIA E II CONGRESSO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM LETRAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO (SNEL), Anais . Cascavel, PR: Edunioeste, 2013. GUERRA, Lucía. La mujer fragmentada: historia de un signo. 2. ed. Santiago: RIL Editores, 2004. KONDER, Leandro. Flora Tristan: uma vida de mulher, uma paixão socialista. RJ: Relume Dumará, 1994. MARCO, Yolanda. Flora Tristán. Feminismo y utopía. Unión obrera. México DF: Fontanamara, 1993. MICHAUD, Stéphane. Lettres. Paris: Seuil, 1980. MICHELET, Jules. A mulher. Martins Fontes. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1995. MURARO, Rose M. Libertação sexual da mulher. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1971. MURARO, Rose M. A mulher no terceiro milênio. Uma história da mulher através dos tempos e suas perspectivas para o futuro. 8. ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos tempos, 2002. PERROT, Michelle. Os excluidos da história. Operários, mulheres e prisioneiros. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. p. 167 - 232. PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005. SÁNCHEZ, Luis A. Flora Tristán: una mujer sola contra el mundo. Caracas: Ex Libris, 1992. Disponível em:

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